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Sigmund Freud

Freud A Lacan - Sonhos

Freud (médico recém-formado) interessa-se em ouvir as histéricas de sua época, mulheres que portavam um sofrimento que não encontrava suas bases clínicas na ciência estabelecida.

Entretanto, para além do campo médico ele resolve ceder vez e voz àquelas mulheres: ao ouvir sua fala, vai elaborando um saber indicativo de “outra cena”, a qual seria de ordem “sexual”. A partir disso ele criará o que denominou de ‘Psychoanalyse’ (Psicanálise), propiciando assim uma nova inteligibilidade para os fenômenos ditos histéricos (sua teoria se aplicará também a outras formas de sofrimento psíquico).

Ao abrir esse novo campo clínico, Freud, em 1889, se interrogará pelo acesso aos conceitos e à lógica que o presidem, e sua prática o levará a ler nos sonhos dos pacientes a via pela qual o Inconsciente (‘das Unbewusste’) poderia enfim ser demarcado. Em 1900 ele publica A Interpretação dos Sonhos (‘Die Traumdeutung’), obra na qual os sonhos serão caracterizados como “manifestação psíquica do inconsciente por excelência”

O capítulo VII é considerado o mais importante da obra, pois, nele Freud vai romper com sua resistência de sair do campo médico/neurológico para adentrar no campo metapsicológico e da linguagem. “E é por essa pertença à linguagem que o sonho vai tornar-se o modelo para a compreensão dos sintomas, dos mitos, das religiões, da obra de arte como formas dissimuladas do desejo. Essa é a razão pela qual Freud afirma que o sonho é o pórtico real da psicanálise.”

Estabelecerá em seu texto que o sonho é um “ato psíquico genuíno; sua força impulsora é sempre um desejo a ser realizado”, sua irreconhecibilidade resulta, muitas vezes, pelo fato de seu conteúdo sofrer os mesmos processos que ocorrem no funcionamento do aparelho psíquico. A saber, censura, condensações, deslocamentos, sobredeterminações, são processos que tornam possível ao material inconsciente aparecer no sonho. aplicam-se também aos sintomas.

A censura advém do próprio conceito de recalcamento na teoria de Freud que define o recalcamento como o processo cuja essência consiste no fato de afastar determinada representação do consciente, mantendo-a à distância

Uma ideia ou pensamento inconsciente não tão bem aceitos por uma instância psíquica é substituída por outra mais aceitável – condensação – para que possa vir à tona.

“A condensação pode operar de três maneiras: primeiro, omitindo determinados elementos do conteúdo latente; segundo, permitindo que apenas um fragmento de alguns complexos do sonho latente apareça no sonho manifesto; terceiro, combinando vários elementos do conteúdo latente que possuem algo em comum num único elemento do conteúdo manifesto.”

Pode ocorrer também de uma ideia se deslocar por outra ideia ou pensamento mais aceitável, mas sua ligação com o inconsciente estará lá:

“ Tal como a condensação, o deslocamento é obra da censura dos sonhos, e opera basicamente de duas maneiras: a primeira, pela substituição de um elemento latente por um outro mais remoto que funcione em relação ao primeiro como uma simples alusão; a segunda maneira é quando o acento é mudado de um elemento para o outro.”

Quanto à sobredeterminação:

“Estas nos remetem sempre a uma pluralidade de fatores determinantes, tornando impossível esgotarmos o sentido de um sonho ou de um sintoma numa única explicação. A sobredeterminação atinge tanto o sonho considerado como um todo, como seus elementos considerados isoladamente, e isso acontece porque o sonho é construído a partir de uma massa de pensamentos oníricos na qual aqueles elementos que possuem articulações mais fortes e numerosas passam a formar o conteúdo onírico.”

Segundo Freud (1900), o sonho contém pensamentos inconscientes, diurnos, reflexões sobre a realidade, imagens oníricas ou diurnas, restos ouvidos, vistos, sentidos.

A “característica mais chamativa do sonho é que, um pensamento desejado, ouvido, sentido é objetivado no sonho, é figurado como cena ou vivenciado” (…) “os quais julgamos e acreditamos experimentar.”

Freud percebe que esses mesmos processos diziam do funcionamento do aparelho psíquico o qual vinha formulando e “processos semelhantes ocorriam nas alucinações, visões que podiam aparecer na saúde ou nos adoecimentos neuróticos.”

Diferente de outros campos, para a Psicanálise o sonho diz do sonhador, do sujeito que sonha e conta seu sonho. Só ele pode contar, escolher as palavras que irá usar para falar dele. Escolherá uma palavra e não outra para falar de um determinado sonho e essas palavras vão dizer respeito a ele.

Desse modo, o sonho em si não importa tanto, mas sim aquilo que o sujeito diz sobre ele. Freud nos revela que é na fala que trazemos os pensamentos inconscientes presentes no sonho. Nos ditos do analisando o analista procura ouvir um dizer. O inconsciente “é um texto a espera de ser lido”.

Lembramos de fragmentos de sonho e não do sonho completo e quando o contamos já estamos fazendo uma leitura do sonho, constituindo assim a nossa interpretação. Freud estabelece que o que lembramos e contamos diz do conteúdo manifesto do sonho e o que dizemos sobre ele porta conteúdos latentes também presentes no sonho.

Quanto aos esquecimentos dos sonhos, Freud o coloca do lado das formações do inconsciente e à serviço da resistência. Como dito anteriormente, processo advindo também do próprio funcionamento do aparelho psíquico promovida pelo próprio processo de recalque.

O sonho não é o inconsciente, mas uma formação deste e obedece às leis de funcionamento dessa instância estabelecida por Freud. O inconsciente em Freud é o recalcado. Sobre o recalcado Garcia-Roza (1993) no diz que somos marcados em nossos primórdios por um desejo de cometer dois crimes: o incesto e o parricídio. Não que o tenhamos cometido, mas só pelo fato de ter desejado já nos torna culpados. Essa “ideia” será afastada – recalcada – de nossa consciência a fim de nos proteger. Entretanto, continuará sendo investida, enlaçada pela pulsão a fim de obter uma satisfação. As formações do inconsciente estarão a serviço disso, a saber, satisfazer pela via de um substituto, um desejo recalcado.

Para Freud (1900) o estado de sono favoreceria a formação do sonho já que neste estado há um rebaixamento da censura e resistência psíquica.

Quanto à interpretação dos sonhos, Freud (1900) nos diz que é idêntica à interpretação empregada nos sintomas histéricos. A saber, interrogar o desejo, ouvir um dizer que aponte para esta outra realidade descoberta por Freud – a realidade sexual do inconsciente.

O sexual em Freud não diz respeito ao ato sexual em si. Mas que estamos em relação o tempo todo, desde que nascemos, com a demanda, com o desejo e com o gozo desse Outro e que tal relação está marcada, inevitavelmente, por sentimentos de amor (desejo de ser amado) e de ódio ou hostilidade para com esse Outro.

Um sonho pode ser analisado inúmeras vezes, de inúmeras formas e de diferentes pontos de vista pelo próprio sonhador.

Jacques Lacan

Freud A Lacan - Sonhos

Lacan acompanha Freud, quando estabelece “o inconsciente estruturado como uma linguagem” e demonstra que o inconsciente é estruturado por significantes – representantes sem representação. Sua função é de instituir, inaugurar o sujeito-do-inconsciente. Dar início à cadeia. Não temos acesso a eles, só podemos ressignificá-los. É a marca do significante que abre uma falta, falta no corpo, retira o objeto natural que o completaria, sai do instinto e vai para a pulsão. se situa no nível da substância “gozante”.

Lacan entende por ‘substância gozante’: o corpo de seres enquanto sujeitos instituídos pela estrutura da Linguagem. O corpo ao perder sua continuidade com a natureza é recortado de sua própria carne e perde sua função natural. “O olho que deveria se restringir a guiar visualmente o indivíduo acaba se permutando em olhar que recusa a enxergar. Por essa via, a carne e as funções somáticas se tornam elementos significantes.”

Antes de uma criança vir ao mundo, ela já existe no discurso dos pais, ou seja, a linguagem a antecede e a inscreve nesse campo através de seu nome próprio. Ele percebe as palavras, inicialmente, como um enxame de sons – de significantes mestres, ou seja, S¹-S¹-S¹…, sem nenhuma significação. É esse campo da linguagem, lugar em que a criança é sempre interpretada, que Lacan designa como Outro. Quando a criança articula esses significantes entre si e, com isso, produz um efeito de sentido, passando a organizar seu pensamento em cadeia, sob a forma de discurso, podemos afirmar que é possível localizar nessa cadeia associativa o efeito sujeito. Sob essa perspectiva, é perfeitamente pertinente dizer que o sujeito advém do campo do Outro.

O corpo se acidenta com o significante que nada mais é do que o desejo do Outro, qualquer coisa que venha do Outro e o toca, uma fala, um olhar. Mas não tem um momento, isso acontece o tempo todo desde que nascemos. Essa é constituição do aparelho psíquico em Freud e a constituição do sujeito-do-significante e, pois, do sujeito-do-Inconsciente em Lacan.

que esse sujeito destacado por Freud está sempre se fazendo representar numa cadeia – cadeia de pensamentos, cadeia de palavras – por um significante para outro significante. E isso só é possível porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem. E, sendo estruturado como uma linguagem, as formações do inconsciente obedecem às suas leis, a metáfora e a metonímia. A frase “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” quer dizer que as formações do inconsciente sempre têm uma mensagem veiculada. Em outras palavras, podem ser tomadas como um texto para ser lido.

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse pela. (…) é manifestamente pela linguagem que explico o inconsciente: a linguagem, portanto, (…), é a condição do inconsciente.” (LACAN, 2003, p490)

A metáfora e a metonímia em Lacan equivalem à condensação e ao deslocamento em Freud, respectivamente.

A metáfora funciona por uma substituição, ela aparece nas formações do inconsciente como o sintoma, o esquecimento, os chistes e os atos falhos. É através desta estrutura metafórica que se produz os efeitos de significação. “A condição de passagem do significante para o significado, essa transposição da barra S/s, exprime provisoriamente o lugar de sujeito… mesmo não havendo encontro ou centralização entre essas partes”.

Acompanhando a metáfora, temos a metonímia. A metonímia é o deslizamento de significante a significante, e se dá em uma relação de deslocamento indicando que essa “conexão do significante com o significante permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta-a-ser na relação de objeto, servindo-se do valor de envio da significação para investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta.” Pela metonímia e pelo seu valor negativo no que diz respeito à significação vemos o valor da manutenção da barra no S/s lacaniano.

A realização de desejo em Psicanalise não é de “desejo de”, mas, de “falta de”.

Lacan (1964) prossegue dizendo que “a causa psicanalítica é aquilo que manca”, que tropeça. O que chama atenção de Freud no sonho, no ato falho, no chiste? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Freud encontra ali algo de um achado.”

“O que desperta no sonho senão uma outra realidade?” A realidade do inconsciente, a realidade sexual do inconsciente, dita de outro modo, a realidade faltosa – um impossível.

É no sonho somente que se poder dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável)

“O despertar … motiva o surgimento da realidade representada” que seria a consciência em Freud,pois, “o encontro sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para não despertar.” (LACAN, 1964, p62)

Uma Conclusão

Freud A Lacan - Sonhos

Se Freud em seu texto “Análise Terminável e Interminável” diz de seus impossíveis, a saber, educar, governar e analisar a pulsão e que, no sonho, em seu “umbigo” tocaria no “ponto de desconhecido” pelo sujeito o qual ficaria em aberto.

Em Lacan o “umbigo do sonho” toca no conceito de Real enquanto impossível. A saber, de haver complementaridade entre os sexos, da impossibilidade de o significante representar alguma coisa, responder acerca dos sexos, da morte, da paternidade ou maternidade, do amor.

A uma análise interessa o sujeito-do-inconsciente e, pois, o sujeito da enunciação e por meio dos ditos sobre os sonhos em análise (dos enunciados emitidos pelo sonhador) é possível extrair um dizer que toque nesta “outra realidade”. Esta “outra realidade” é propriamente a “realidade psíquica”, qual seja, a da não-relação entre o sujeito e o Outro.

Emeline Costa – Psicanalista. Coordenadora da Matriz Lacaniana

Bibliografia

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A Interpretação dos sonhos. Vol 1 e 2/ Sigmund Freud; tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tania Rivera, ensaio bibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza – Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. 352p. (Coleção L&PM POCKET; v.1061)
2

FREUD, Sigmund [1937]

Análise Terminável e Interminável. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 23).
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Garcia-Roza, Luiz Alfredo

1936- Freud e o inconsciente / Luiz Alfredo Garcia-Roza. – 24.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
4

GARCIA-ROZA L. A

A interpretação do sonho (1900). Volume 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
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LACAN, Jacques [1957]

A instância da letra e a razão desde Freud. In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 937p.
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LACAN, Jacques [1956]

Escritos I. São Paulo: Perspectiva, 1966. 342p.
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LACAN, Jacques [1953]

Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 937LACAN, J. ‘O aturdito’ [1972], in: Outros escritos [2001]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003: 490.
8

LACAN, Jacques [1901-1981]

O seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 1964/ Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques Alain-Miller; tradução M.D. Magno. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
9

LACAN, Jacques [1901-1981]

O seminário: livro 20. Mais ainda 1972/1973 Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques Alain-Miller; tradução M.D. Magno. 3º ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Dra. Iara Walkiria Belfort Rolim

Autora Dra. Iara Walkiria Belfort Rolim

Psicóloga Clínica com 30 anos de experiência, pós-graduada em Estresse Pós Traumático (TEPT), Palestrante e Grafóloga.

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